Reflexão: A pílula do exercício
É possível reproduzir os efeitos do exercício numa cápsula?
Redação
Por Eduardo Figueiredo
Há evidências crescentes de que um estilo de vida ativo beneficia tanto o corpo quanto o cérebro. Entretanto, em pleno século XXI observamos uma grande negligência por parte da população mundial com relação à importância da prática de exercícios para saúde, representado por um quadro grave de saúde pública mundial. De fato, quase metade da população brasileira, aproximadamente 46% da população são classificados como sedentários, ou seja, não cumprem as recomendações (OMS) de níveis de atividade física semanais, deixando essa população propensa a sofrer as graves consequências do sedentarismo.
O projeto da “pílula do exercício” começou em 2007, quando Ronald Evans um biólogo molecular fez uma descoberta surpreendente que foi publicada na renomada revista científica Cell, mostrando um novo gatilho genético que transformou os camundongos de laboratório em superatletas, mostrando que esses animais poderiam correr uma distância 90% maior em relação aos animais normais. Em 2008, a equipe de Ronald Evans, publicou um artigo sobre os efeitos de dois moduladores metabólicos chamados GW501516 e AICAR na resistência física de animais de laboratório. Ambas as substâncias, também chamadas de 'pílulas de exercício' ou 'miméticos de exercício', mostraram a capacidade de causar mudanças multidirecionais no metabolismo muscular. Em um posterior experimento com AICAR, Ronald Evans observou que os animais que receberam a droga corriam 23% por mais tempo e 44% mais longe em relação aos animais sedentários, e mais interessante, os camundongos que receberam o AICAR nesse estudo não haviam treinado previamente, ou seja, eles melhoraram sua condição sem treinamento prévio a administração da droga. O AICAR fez tanto sucesso que já em 2009 a Agência Francesa Anti-Doping disse que o AICAR tinha sido usado por ciclistas no Tour de France de 2009, embora não tenha revelado nomes.
Outra promissora “pílula de exercício” utilizada em estudos foi a GW501516 um agonista do receptor nuclear PPAR-delta que regula a transcrição de mais de 100 genes de manutenção (housekeeping), cujos produtos estão envolvidos no metabolismo fundamental do tecido. Após a sua ativação, há um controle da expressão de genes implicados no metabolismo lipídico intra e extracelular e na capacidade oxidativa. Nos músculos esqueléticos, o PPAR-delta regula o transporte e a oxidação de ácidos graxos, a termogênese e a formação de fibras musculares de contração lenta, o que resulta em melhor desempenho de endurance. Durante um estudo sobre o metabolismo da gordura, foi observado que GW501516 aumentou o desempenho físico em animais com uma dosagem de 2-5 mg/kg/dia usada em conjunto com exercício. Além disso, observou-se a indução da transcrição de genes oxidativos, bem como substratos modificados dos músculos esqueléticos que causaram uma mudança do consumo de carboidratos para lipídios. Como resultado, foi observado uma melhora geral do desempenho de endurance em aproximadamente 70%.
O AICAR é uma substância endógena e um metabólito intermediário que ativa as enzimas sensíveis ao AMP, como a AMPK, e assim, contribui para o metabolismo oxidativo e a biogênese mitocondrial. A AMPK foi descrita como um “sensor energético” ou um “interruptor mestre metabólico”, pois ativa as vias catabólicas que geram ATP, como a glicólise e a beta-oxidação de ácidos graxos, ao mesmo tempo, desliga processos que consomem ATP, como biossíntese e proliferação celular. De fato, AICAR pode mimetizar os efeitos do exercício através do aumento de glicogênio em repouso e o número de mitocôndrias musculares. Também foram relatados aumentos na angiogênese e vascularização de forma semelhante ao exercício, embora nesse sentido não houvesse ativação de AMPK, mas sim mecanismos alternativos, independentes e ainda pouco esclarecidos. Entretanto, inicialmente o FDA (Food and Drug Administration) recusou sua aprovação, já que não havia implicação em doenças. Isso levou aos grupos de pesquisas iniciarem uma série de estudos visando sua ação terapêutica. Diante disso, as pesquisas se voltaram aos pacientes que não conseguiam se exercitar devido as suas condições de saúde. O AICAR tem sido alvo de muitos estudos sobre diabetes tipo II, uma vez que foi observado efeitos importantes na redução da hiperglicemia e melhora da tolerância à glicose em camundongos diabéticos obesos de forma independente de insulina, aumentando a captação de glicose mediada por GLUT-4 (uma proteína transportadora de glicose na membrana celular). De fato, esses compostos têm obtido resultados promissores no tratamento de doenças metabólicas.
A publicação dos resultados desses estudos com esses moduladores metabólicos do exercício gerou um grande debate científico, se o exercício em uma “pílula” poderia mesmo substituir a prática de exercícios. Outros pesquisadores alegaram que o exercício físico tem efeitos multissistêmicos e seria muito improvável ser substituído por uma pílula (o que também acho). Além disso, houve também questionamentos a respeito da segurança da utilização desses compostos de forma regular.
Apesar de toda empolgação inicial dos ‘viciados no sofá’ sobre a possibilidade de mimetizar os efeitos do exercício em uma pílula, já em 2013 o World Anti-Doping Agency (WADA) publicou em seu site um alerta sobre riscos à saúde associado ao uso de GW501516, afirmando que esta substância, uma vez uma droga em desenvolvimento, foi retirada da pesquisa e encerrada quando foram descobertas toxicidades graves em animais. Os estudos de carcinogenicidade (possíveis efeitos carcinógenos) de longo prazo (104 semanas de duração) em altas doses mostraram que a administração de GW501516 em ratos (40 mg/kg/dia) e camundongos (80 mg/kg/dia) leva a achados neoplásicos em múltiplos tecidos. Ao contrário dos efeitos adversos em animais, estudos em humanos não mostrou efeitos adversos significativos, possivelmente por administrar doses consideravelmente mais baixas (10 mg/kg/dia) e por períodos de tempo muito mais curtos (até 12 semanas), no entanto, os dados disponíveis sobre a segurança do GW501516 ainda são insuficientes para avaliar os riscos à saúde a longo prazo associados à ingestão por seres humanos.
Quanto ao AICAR, poucos eventos adversos foram relatados, na realidade até hoje apenas um único efeito foi associado à sua administração, a de que inevitavelmente leva a um aumento substancial de ácido lático nos músculos. No entanto, apenas testes limitados foram feitos em humanos, então seria possível haver outras consequências, especialmente a longo prazo, que ainda não foram descobertas.
Acredito que muitos atletas amadores que buscam performance e que leram esse texto até aqui, ficaram entusiasmados com a possibilidade de utilizar um ‘suplemento’ para melhorar o condicionamento e dar aquela turbinada nos treinos e competições. Porém, em 2009 a WADA já adicionava à sua lista de substâncias proibidas o GW501516, e da mesma forma o AICAR recebeu atenção especial devido às suas possíveis melhorias ao condicionamento físico e denúncias de apreensões de distribuições ilícitas desse composto. Devido a esses fatos, também terminou entrando para a lista proibida em 2009. Já em 2011 essas duas substâncias foram classificadas como de classe M3 da WADA, que significa “doping genético” com base na seguinte afirmação: “O uso de agentes que diretamente ou indiretamente afetam funções conhecidas por influenciar o desempenho alterando a expressão gênica”. Entretanto, em 2012, os dois compostos foram movidos para a classe S4, moduladores hormonais e metabólicos, e o doping genético foi definido mais precisamente como “a transferência de polímeros de ácidos nucleicos ou análogos de ácidos nucleicos”.
Os efeitos benéficos do exercício no corpo muito provavelmente nunca serão reproduzidos em uma pílula. Porém, os complexos mecanismos moleculares e modos de ação subjacentes fornecem múltiplas oportunidades para estratégias farmacológicas para as várias doenças. Um possível uso desta classe de compostos pode ser vislumbrado em paralelo com os paradigmas de treinamento leve, como “drogas auxiliares” ajudando a alcançar um benefício induzido pelo exercício mais completo, tanto no cérebro quanto nas funções periféricas. Isso é especialmente pungente para condições, como obesidade mórbida, sarcopenia ou doenças neurodegenerativas, que podem impedir o paciente de realizar exercícios efetivamente.
Não há dúvida que a melhor forma de estimularmos os mecanismos moleculares em resposta ao exercício, é através do movimento, da própria atividade de contração muscular e aumento da frequência cardíaca. Lembre-se que os mecanismos de ação desses compostos envolvem uma via de sinalização que engloba, principalmente o metabolismo, porém quando olhamos para adaptações moleculares em resposta ao exercício, observamos um controle sistêmico que responde não somente a uma única via de sinalização, mas que implica em respostas moleculares em outros sistemas além do metabolismo.
Todo o benefício decorrente de uma sessão de exercício não pode ser isolado em apenas um mecanismo molecular, além do que, todo o ambiente contribuirá para as adaptações aos estímulos, levando a diferentes respostas orgânicas no corpo. Pensem em uma sessão de treino, a parte social (treinar com os amigos), treinar em ambientes com beleza natural (florestas, parques, praias) favorecerá não somente o corpo, mas também todo um aspecto social, psicológico e emocional. Quantas vezes não nos deparamos com dias difíceis e que foram melhorados, até mesmo esquecidos, com uma sessão de treino em um lugar bonito? Realmente, o que o exercício proporciona jamais poderá ser mimetizado em uma ‘pílula’.
Prof. Eduardo FigueiredoGraduado em Educação FísicaEspecialista em Fisiologia do exercício
Mestrado em Oncologia – PPGO / CPQ – INCAProfessor de ciclismo da equipe Cordella team
Professor da clínica de reabilitação cardíaca MEDSPORTPersonal trainer@prof.edu_figueiredo